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Novos e antigos japonismos

newsletter - Carta de Notícias por Roberto Maxwell

Relatos de encontros com o Japão na Cidade do México

Roberto Maxwell

21 de abr. de 2022

Para acompanhar a sua leitura, prepare um chá ou um bom saquê e plugue-se nesta playlist que conta um pouco da relação de David Bowie com o Japão. Toque aqui ou no player abaixo.



Como essa é a primeira edição dessa “carta de notícias”, acho que é importante que eu me apresente para você. Sou o Roberto Maxwell, jornalista, guia e consultor de viagens e especialista em saquê. Vivo há 16 anos no Japão e tem algo neste país que me faz chamá-lo de casa. Não sei exatamente o que é, deve ser um monte de coisa e acho que, neste espaço, ao longo do tempo, talvez consigamos descobrir isso juntos.


Se você também me acompanha no Instagram sabe que, neste momento, estou numa viagem fora do Japão há algumas semanas. Foi uma saída completamente inusitada, num momento ainda meio que pandêmico. Estive, basicamente, baseado em São Paulo por algumas semanas, com uma escapada para o Rio e, neste momento, num ônibus em direção a Irapuato, uma cidade no centro do México que eu não tenho ideia de como seja.


Desde o início de fevereiro fora do Japão, estou vivendo momentos de encontros com as múltiplas maneiras em que a cultura japonesa se manifesta fora de sua origem. Nada mais justo, então, abrir esse espaço compartilhando com vocês algumas das pequenas descobertas feitas nessas últimas semanas.


Lá e cá trens com pneus

Nunca planejei visitar o México. Falo isso com muita tranquilidade. Em viagem, nada é obrigatório. Acredito firmemente que conhecimento e experiências não se impõem. Acontece que meu parceiro de vida escolheu o México como lar e aqui estou eu para matar saudades e descobrir como ele está construindo sua vida neste novo país.


Pousei na capital mexicana, que é só uma das maiores metrópoles do planeta, no começo da tarde, horário seguro para quem veio decidido a se aventurar. Em poucos minutos, me vi fora do aeroporto, relativamente perdido, puxando a minha mala de rodinhas por um estreito caminho, espremido entre lojinhas e restaurantes populares de um lado e barraquinhas com todas as iguarias mexicanas que você possa imaginar. Era um lugar nada turístico mas, contrariando expectativas de quem ouviu essa história em primeira mão, me senti seguro e em casa.


Com a ajuda dos transeuntes, depois de uns 20 minutos de caminhada, eu estava no metrô. Já acomodado, me peguei com aquela horrorosa mania de comparar as coisas. À minha cabeça, só vinha o metrô toquiota, com seus carros limpos, como se tivessem acabado de sair da fábrica. O oposto do que eu estava vivendo: na Cidade do México, o metrô é uma loucura, com vagões deteriorados, informação de menos e uma certa sensação de abandono. Mas estamos falando de um dos sistemas de transporte de massa mais baratos do mundo. Embarcar para uma viagem em uma de suas 12 linhas custa míseros 5 pesos, algo como R$1,17 ou ¥32, independente da distância. Na capital japonesa, só o valor inicial já é seis vezes maior e quanto mais longe você vai, mais caro fica. Em outras palavras, a relação custo benefício do metrô mexicano é incomparável!


Assim, analisando e ponderando, fiz a viagem de cerca de 25 minutos até o bairro onde decidi me hospedar. Desci do trem, saquei meu celular e registrei a partida da composição. Foi aí que eu notei que os carros não eram equipados com rodas de ferro mas, sim, com pneus.



Trem do metrô do México (foto: Roberto Maxwell)

Dez das 12 linhas da Cidade do México são nesse sistema que foi desenvolvido comercialmente na França para a recuperação do metrô de Paris, a partir dos anos 1950. Várias outras cidades adotaram o sistema, incluindo a Cidade do México, onde o solo é bem instável e o sistema se mostrou bem adequado.


Esses “trens com pneus” passaram a ser muito caros a mim no Japão, onde os vi pela primeira vez ziguezagueando entre os prédios do centro financeiro de Tóquio. As composições da linha Yurikamome partem da estação de Shinbashi sobre viadutos elegantemente traçados entre arranha-céus, passam pelos armazéns da zona portuária e sobem numa espiral para se embrenharem nas entranhas da Rainbow Bridge, uma ponte pênsil que conecta a área “continental” de Tóquio à ilha artificial de Odaiba.


Além de ser um “trem com pneu”, o Yurikamome é automático, ou seja, não tem maquinista. Não é uma tecnologia nova, na real. A Linha 4 - Amarela do Metrô de São Paulo também funciona assim. A diferença é que no Yurikamome é possível apreciar a vista do “assento do maquinista”. Por isso, quando embarcar em Shinbashi para atravessar a baía, vá direto para a primeira porta do primeiro vagão. E como a informação não é segredo para ninguém, é bem capaz de já ter gente esperando para se sentar nos mesmo lugares. Espere o próximo carro, se necessário for. Vale muito a pena. Você vai percorrer suavemente o centro financeiro, a zona portuária, o loop da subida, o psicodélico “subsolo” da ponte… Tudo de camarote. Para o seu passeio a Odaiba ficar melhor que isso, só você terminando o dia assistindo da ilha o mais belo por do sol de Tóquio.


Olhar os trenzinhos do Yurikamome fazendo curvas niemáicas virou uma coisa tão bossa nova para mim que eu tive que acrescantar a cena num dos primeiros planos do clipe que eu dirigi para a dupla — já extinta — de cantores e amigos Arthur & Sabrina. A música se chama Edo e é o primeiro single do álbum A Rosa e o Girassol que eles lançaram em 2010.


Se é Ginza-sen que sen que é / Se é pra Shinjuku ou vai a pé / Shibuya ou Asakusa / Roppongi está fácil de achar / Pode vir sem medo, Edo / Pode vir sem medo que eu vou gostar

Edo é o nome original de Tóquio e Ginza-sen é a “Linha Ginza”, a mais antiga do metrô toquiota, em japonês. A música usa uma série de jogos de palavras para relatar o sentimento do autor, recém chegado à capital japonesa. Dá uma paradinha na playlist e curte o vídeo com som.





Cerejeira? Não, jacarandá

A parte mais triste de estar fora do Japão no início de abril é perder a floração das cerejeiras. Só quem já viu entende como é especial. Cidades cinzas como Tóquio e Osaka ficam, de repente, totalmente cobertas de cor-de-rosa.



Floração das cerejeiras num pequeno templo budista de Tóquio (foto: Roberto Maxwell)

O tempo é curto. As cerejeiras ficam completamente floridas por apenas uma semana. Depois, as pétalas começam a chuviscar deixando a paisagem ainda mais mágica. No Parque Ueno, no entorno do Palácio Imperial ou às margens dos rios Sumida e Meguro, todos em Tóquio, você percebe claramente que a intenção foi criar sensações com a paisagem.


O inverno na atual e na antiga capital japonesa — Kyoto — é relativamente rigoroso, com muitos dias de temperatura abaixo de zero. Por isso, a presença das flores de cerejeira no início da primavera é muito significativa. Com a temperatura mais amena, as pessoas começam a fazer atividades de lazer ao ar livre, enquanto a paisagem ganha tons de contos de fada. É tão importante que o ato de se reunir para observar as flores tem até uma palavra: hanami.


Eu já tinha fugido do frio toquiota para São Paulo há algumas semanas. Mas faltavam as flores. Por isso, foi com muita alegria que encontrei a Cidade do México coberta de lilás. Parques, jardins e avenidas totalmente floridos me trouxeram de volta a sensação — interrompida pela mudança de hemisfério — de que, finalmente, a primavera tinha começado. Comentei sobre isso com o meu anfitrião do dia, o artista brasileiro radicado no país Helio Vianna, e ele me contou que as árvores eram pés de jacarandá. As únicas referências que eu tinha da espécie eram, na infância, ouvir falar de móveis feitos com a madeira extraída da árvore e, claro, a fofíssima música do Wilson Simonal.



Jacarandás floridos no Parque Tamayo, centro da capital mexicana (foto: Roberto Maxwell)

O jacarandá é nativo de América do Sul, mas está ameaçado em seu habitat natural. A subespécie mimosa chega a ter 15 metros de altura e é muito usada no embelezamento urbano pela sombra que produz e, claro, pela bela floração na primavera. Como as cerejeiras, o jacarandá perde suas folhas no inverno e “renasce” florido quando a temperatura sobe. Porém, ao contrário da árvore-símbolo do Japão, sua floração é mais duradoura. Vai até o início do verão.


Fiquei curiosíssimo sobre a escolha do jacarandá para o paisagismo das áreas centrais da Cidade do México e é aqui que as coisas ficam ainda mais interessantes. Conta-se que um japonês trouxe a árvore para o país. Matsumoto Tatsugoro foi um designer de jardins e é considerado um dos primeiros japoneses a chegar ao México, depois do hiato pós-Grandes Navegações. Isso foi no ano de 1896. Antes, ele tinha passado pelo Peru, pelos Estados Unidos e até pelo Brasil. Mas foi pela terra dos náuatles que Matsumoto se apaixonou. Assim, ele decidiu fincar raízes. Diz-se que um dos motivos foi o modo com que os mexicanos lidam com as flores.



Matsumoto Tatsugoro em sua estufa, na Cidade do México (acervo familiar)

Nos anos 1920, já estabelecido e respeitado como jardineiro e tendo feito trabalhos para alguns das mais ricas famílias do México, Matsumoto recebeu uma consulta do governo japonês. Anos antes, o Japão tinha presenteado os Estados Unidos com 3 mil pés de cerejeira que foram plantadas em Washington e até hoje são um dos grandes atrativos da primavera da capital norte-americana. O Japão queria saber se a espécie teria o mesmo sucesso na Cidade do México. Isso porque o governo do país latino-americano havia sugerido ao japonês que oferecesse cerejeiras para serem plantadas também nas ruas da capital mexicana.


Matsumoto explicou ao Japão que as cerejeiras dificilmente vingariam na Cidade do México. As árvores precisam de inverno rigoroso para se desenvolver e florir bem. Sendo assim, o jardineiro fez uma contraproposta aos mexicanos: plantar o jacarandá, uma espécie que ele tinha trazido do Brasil e já estava cultivando com sucesso em suas estufas no México. A planta não só se deu bem no país como as floradas duravam mais que a média já que praticamente não chove na primavera mexicana. Hoje o lilás é a cor da estação florida não somente na capital mas, também, em outras cidades do país. Tudo graças a uma inusitada conexão Japão - Brasil - México.


A conquista do México em um biombo

O Soumaya é um museu com nome de mulher. Seu fundador, Carlos Slim, é um dos homens mais ricos do México e ele decidiu investir uma pequena parcela de sua fortuna na criação de uma instituição de arte. São dois espaços de exibição. O mais popular deles fica na Plaza Carso, norte da Cidade do México, com a portaria voltada para os trilhos de uma linha de trem aparentemente desativada e num dos bairros mais caros da região. Trata-se de um prédio de 6 andares, com uma superfície de fachada irregular e coberta por 16 mil placas hexagonais de alumínio. No exterior, brilho não falta.



Cortinas de vidro na vizinhança do Museu Soumaya (foto: Roberto Maxwell)

A sede da Plaza Carso acolhe a coleção particular de Slim que inclui obras de grandes mestres da arte europeia, de Renoir a Van Gogh, além de importantes nomes locais como Diego Rivera e inúmeras peças de arte asiática e pré-hispânica. A entrada é franca e, antes da pandemia, o espaço costumava atrair mais de 2,5 milhões de visitantes por ano. Logo no salão de entrada, bem ao lado de uma réplica d’O Pensador de Rodin, uma obra me chamou atenção de imediato. Um belíssimo biombo de 10 telas e mais de 4 metros de comprimento, ricamente decorado.


O biombo é uma espécie de tela portátil que pode ser usado como divisória de espaços. Ele foi criado na China no século 2 antes de Cristo. Por sua praticidade e elegância, se espalhou pela Ásia. No Japão, estima-se que tenha chegado no século 7, época em que a influência cultural chinesa foi fundamental para o desenvolvimento cultural e técnico da sociedade.


Feito de madeira, a aparentemente simples solução doméstica inspirou grandes artesãos a criarem peças únicas e acabou sendo elevado ao status de obra de arte. Além disso, sua função dentro dos espaços das casas e salões gerou uma aura de mistério, sedução e intriga que virou rico material para a literatura, para a pintura e, posteriormente, para o cinema.


Voltando ao Soumaya, o biombo exposto é uma obra datada da metade dos anos 1680 e atribuída ao pintor Pedro Villegas. Ele tem duas faces. Uma é chamada de A Conquista do México é inspirada numa outra obra, também produzida no México, que mostra diversas cenas da batalha em que as tropas do invasor espanhol Hernan Cortés, aliado aos tlaxcaltecas, enfrentou os guerreiros astecas liderados por Montezuma II.

(Relatos históricos dizem que, para evitar a invasão, o líder nativo chegou a presentear Cortés com flores, a maior honraria do povo asteca da época.)


Pintadas sob o ponto de vista do colonizador, as obras são reveladoras do olhar que os espanhóis tinham sobre os nativos. Uma delas chega a mostrar o assassinato do governante indígena como obra de seus próprios irmãos de etnia, algo que é contestado por pesquisadores contemporâneos. Novas pesquisas apontam que os espanhóis teriam dado cabo da vida de Montezuma II, ao contrário do que seria de conhecimento geral até bem pouco tempo atrás.


Uma das faces do biombo mostra, de forma europeizada, a batalha que levou à queda do Império Asteca no que hoje chamamos de México (foto: Roberto Maxwell)

A outra face do biombo exposto no Museu Soumaya traz uma visão do alto, da Cidade do México já como uma urbe europeizada, com suas torres e igrejas.


Os biombos chegaram no México no século 17, muitos deles trazidos do Japão. Embora os portugueses tenham sido mais proeminentes na relação com os japoneses, comerciantes e missionários espanhóis também pisaram no arquipélago asiático. Ainda no século 16, a Espanha criou uma rota de comércio entre Acapulco (no México) e Manila (nas Filipinas). Através dessa rota, bens produzidos no Japão eram trazidos para a América e, em seguida, levados para a Espanha. Este comércio era tão grandioso que, em 1613, o importante senhor feudal japonês Date Masamune mandou uma missão diplomática para a Nova Espanha, ou seja, para o México atual.


Para a pesquisadora Elena FitzPatrick Sifford, especialista em arte na América Latina da Muhlenberg College, os biombos eram usados pela elite mexicana como um “reflexo dos gostos sofisticados de seus proprietários cosmopolitas”. Ela — como eu — imaginou as peças, agora já produzidas localmente, “decorando de forma suntuosa as casas da Cidade do México” do século 18.


Sifford analisou o biombo que teria inspirado a peça já mostrada aqui e concluiu que ele deveria ser o centro de animadas conversas nos eventos organizados pela elite colonial mexicana, quem sabe como parte de “jogos inventados ou enigmas que relacionassem episódios da Conquista com determinadas partes da cidade”.


Em um interessante artigo, ela busca nas palavras da também pesquisadora de história da arte Barbara E. Mundy, da Universidade Tulane, para concluir que biombos como o exposto no Museu Soumaya poderiam servir “como uma acessório de memória para relembrar as histórias coletiva e oral da cidade”.


Para mim, o encontro com a obra mostrou que o que entendemos como mundo global é muito mais antigo do que a maioria das pessoas imaginam e que encontros entre culturas podem se manifestar de formas muito surpreendentes.

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