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Majestoso portal do Kencho-ji, no estilo arquitetônico mais característico dos templos zen

OFF-TÓQUIO
UM LINDO DIA DE CHUVA

A uma hora da capital, os templos zen de Kamakura transportam o visitante para outro tempo e são um chamado a respirar – conscientemente

texto e fotos: Angelo Mokutan

O contraste entre o tom escurecido de madeira molhada nos templos e o verde luminoso da vegetação mostra que a chuva faz bem à Kamakura. A uma hora de Tóquio, a primeira capital feudal do Japão (assim foi entre 1185 e 1333) atrai pela profusão de templos deslumbrantes, que faz dela um dos bate-voltas mais procurados por toquiotas e turistas. Ao menos para mim, a chuva suave também é bem- vinda por deixar o lugar tranquilo e com menos visitantes. E foi um dia assim que escolhi para uma das minhas peregrinações à cidade.

 

Cheguei ao Engaku-ji, porta de entrada de Kamakura, às 10h20. Duas histórias em quadrinhos minhas se passam no templo zen budista, pelo qual tenho um carinho especial. O local foi erguido em 1282 em honra aos mortos durante a tentativa de invasão do imperador mongol Kublai Khan ao Japão, em uma rara homenagem aos dois lados de um mesmo conflito.

 

Fui com a ideia de fazer uma meditação zazen guiada, mas as sessões foram interrompidas por causa da pandemia e só estavam disponíveis online. Como eu, figuras importantes buscaram o lugar para meditar – é o caso de Natsume Soseki (1867-1916), um dos grandes escritores do Japão moderno e que estampava a nota de 1000 ienes entre 1984 e 2007. Conforme subia as escadas, lembrei que Daisetz Suzuki, responsável por divulgar o Zen no ocidente há cerca de um século, se educara espiritualmente no templo e recebera a iluminação em seus degraus. A espiritualidade pode parecer algo abstrato e longínquo, mas nesse lugar concreto, pouco tempo atrás, alguém alcançou o que parece tão distante para nós hoje. A emoção foi brevemente interrompida por um esquilo e sua cauda fofa mesmo na chuva, hábil ao pular a cerca de bambu, atravessar na minha frente e subir em uma árvore.

 

Afora o belo jardim e as construções principais, um ponto que passa despercebido para muitos visitantes é também um dos meus favoritos: um mural no qual, de tempos em tempos, o monge-chefe Yokota escreve em pincel. Dessa vez havia um poema de Shinmin Sakamura:

Enquanto estivermos vivos, mantenhamos acesa a chama do amor; desejemos a felicidade de todos os seres viventes deste mundo.

A visita ao Grande Sino, o maior de Kamakura, foi minha despedida do Engaku-ji. Sacralizado em um santuário xintoísta, no topo de outro lance de escada, ele ilustra o sincretismo religioso tão presente no Japão. A subida me deu a impressão de que quem projetou o espaço quis deixar a mensagem de que nenhuma conquista vem sem esforço. Lá de cima, a vista de Kamakura me transportou para a época quando não havia relógios digitais para nos lembrar, quase a cada minuto, como o tempo passa.

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O Grande Sino do Engaku-ji

Tudo zen

O budismo nasceu na Índia, no século 6 a.C, com o príncipe Siddartha Gautama, que negou a riqueza material antes de se tornar Buda. As primeiras escolas da vertente Zen surgiram na China quase 1200 anos depois, no século 6. No Japão, o Zen floresceu por volta do século 12, no Período

Kamakura (1185-1333).

 

Inicialmente, os monges japoneses se formavam na China – o conhecimento trazido de lá ajudou a fazer dos templos um polo cultural. No Período Edo (1603-1868), os templos zen também funcionavam como escola, o teragoya, reforçando tal característica.

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Escadaria no Engaku-ji

Inspirar e expirar no Kenchoji

A 15 minutos de caminhada do Engaku-ji fica o primeiro templo zen do Japão. Um magnífico portão sanmon – característico dos templos zen – revela o Kencho-ji, estabelecido em 1253. Ao atravessá-lo, revi o impressionante pinheiro plantado no mesmo ano da fundação. Diante dele, senti meus trinta e poucos anos insignificantes e imaginei quão pequenas são algumas coisas. Divaguei também sobre o que essa árvore já tinha visto: milhares de crianças nascerem, tempestades, incêndios, terremotos... Naquela hora, meu coração pediu à árvore que me transmitisse um pouco de sua sabedoria.

 

No salão do No salão do Dharma, onde o monge-chefe concede palestras, há obras de arte impressionantes, como uma estátua de Siddartha asceta (quando esteve entregue à prática espiritual), antes de se tornar Buda. Sua magreza, mais estilizada que realista, me fez pensar se eu deveria me preocupar com a próxima refeição ou pensar em coisas mais elevadas. Ao olhar pra cima, um enorme dragão estampa o teto. A pintura é de 2002, para comemorar os 750 anos da fundação do templo. Mais adentro, o restaurado portão Karamon, Patrimônio Cultural Nacional, exibe bonitos entalhes revestidos de ouro e tinta preta. Mas o que prendeu minha atenção foram os lótus cultivados ali perto – algumas flores já abertas se moviam como monjolos, acumulando e dispensando a água da chuva.

O jardim do Kencho-ji, nos fundos, foi concebido pelo fundador do templo, Doryu. Ele foi projetado de modo que  não se visse mais nada, nem uma trilha ou prédio. Foi fácil imergir naquele pequeno mundo e refletir sobre ele. Na minha interpretação, as gotas que caem no laguinho e provocam ondas na superfície são como os pensamentos e emoções que colocamos dentro de nós e ecoam nas nossas ações. De uma varanda com banquinhos, sem pressa, pude contemplar essa cena, assim como as formas simples do jardim. Dessa vez, porém, não tive tempo de visitar a figura mais curiosa do Kencho-ji: a representação de Hansobo, guerreiro com corpo de homem, bico e asas de corvo. A estátua guarda o templo do alto da colina, de onde é possível avistar o Monte Fuji em dias claros.

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Bosque de bambu: sensação de paz e integração com a natureza no Hokoku-ji (foto: Agência Photo AC)

Chá verde e dois mil bambus

Minha terceira parada, o Hokoku-ji, tem a cotação máxima de três estrelas no guia de viagens Michelin. Para chegar a ele há duas opções, de ônibus (às vezes o Google Maps erra o local do ponto) ou em uma hora de caminhada. Como eu já havia andado bastante, optei pela primeira. No ponto há uma pequena fábrica do doce tradicional kamakura yaki, uma pasta escura de gergelim envolta em uma massa assada e verde, à base de farinha e matchá. O pacote com cinco unidades custou 300 ienes, uma bagatela para os padrões turísticos japoneses. Acabei perdendo o ônibus, mas valeu o agrado ao corpo depois de horas à base de água.

 

A presença de turistas japoneses e estrangeiros sob a chuva persistente surpreendeu. Encontrei um templo menor que os outros, com um charmoso jardim na entrada alinhado à arquitetura tradicional. Porém o maior encanto está na parte de trás: um bosque de mais ou menos dois mil bambus, uma pequena casa de chá e um jardim karesansui, de pedras e areia. Apesar de não se comparar a Kyoto, o conjunto me deixou feliz por descobrir um lugar assim tão perto de Tóquio. O ingresso dá direito a um matchá e um docinho à base de kinako (farinha de soja torrada). Tomar a bebida quentinha naquele dia de chuva, contemplando o bosque de bambu, despertou a vontade de me mudar para Kamakura.

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Matchá: agrado ao corpo e espírito (foto: Agência Photo AC)

Última parada: o Grande Buda

Do Hokoku-ji, peguei dois ônibus para chegar a tempo de rever o cartão- postal de Kamakura. Mesmo sendo fluente em japonês, tive um pouco de dificuldade em entender qual deveria pegar na baldeação. Cheguei ao Kotoku-in poucos minutos antes de o templo fechar e segui em direção ao Grande Buda. Ele continua imponente, não há como negar, mas deve ter sido ainda mais. Como sugerem os fragmentos restantes na sua bochecha, à esquerda, a estátua era coberta de ouro.

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Grande Buda de Kamakura: história e fé (foto: Agência Photo AC)

No passado, ela ficava protegida dentro de um pavilhão, assim como o Buda do Todai-ji, em Nara, mas a construção foi destruída por um tsunami no fim do século 15. Os discos enormes de pedra, alicerce para o pavilhão, hoje são utilizados como bancos, que nem sempre acomodam turistas conscientes dessa história. Em agradecimento a esse dia, ofereci incensos ao Grande Buda. Na saída da loja de suvenires, um esquilo chegou como se quisesse se despedir. No trem de volta, com a alma plena, percebi que tinha feito a meditação que eu pretendia no começo do dia, mas em movimento. Uni as mãos em frente ao peito, em gratidão.

Serviço

ENGAKU-JI

Kanagawa-ken Kamakura-shi Yamanouchi 409

www.engakuji.or.jp (em japonês)

KENCHO-JI

Kanagawa-ken Kamakura-shi Yamanouchi 8

www.kenchoji.com (em japonês)

HOKOKU-JI

Kanagawa-ken Kamakura-shi Jomyoji 2-7-4

houkokuji.or.jp (em japonês, inglês e espanhol)

KOTOKU-IN (GRANDE BUDA)

Kanagawa-ken Kamakura-shi Hase 4-2-28

kotoku-in.jp (em japonês e inglês)

Radicado no Japão desde 2006, ANGELO MOKUTAN é um quadrinista mineiro apaixonado pelo pensamento do oriente e do ocidente. Mestre em Design pela Tokyo Zokei University, seus trabalhos mais recentes podem ser encontrados em www.tudozenquadrinhos.com.

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