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Shingo Gokan, o xogum dos bares no Japão

BAR
EMBEVECIDO NO PARAÍSO

O melhor bar de Tóquio – na minha ébria opinião – ocupa três andares com diferentes propostas em Shibuya

texto e fotos: Raphael Tanaka

Cinco da tarde. Adentro o térreo do The SG Club e sou recebido pelo sorriso largo de Pae Ketumarn, o bartender do Guzzle, um dos três ambientes do 10o melhor bar do mundo segundo o The World’s 50 Best Bars, o mais conceituado ranking da mixologia. Conheci Pae no fim de 2019, em seu primeiro dia de trabalho em Tóquio depois de uma temporada no Sober Company, bar do mesmo grupo em Xangai. Assim que me acomodo, o atento Pae, que é tailandês, comenta: “Mais cedo hoje?”. Ele sabe que costumo frequentar o endereço a partir das oito, mas naquela noite o roteiro não seria habitual.

 

A proposta do Guzzle é a mais casual entre os bares que ocupam o The SG Club. Com 18 drinques e seis mocktails (as preparações sem álcool), a carta de coquetéis varia entre 1200 e 1800 ienes por item. Um deles é o No. 1 Cup, meu primeiro pedido. Carro-chefe da casa, mistura Pimm’s No. 1 (bebida inglesa à base de gim, ervas e licores), gim, earl grey (chá preto com óleo essencial de bergamota), cítricos, especiarias, água gaseificada e nihonshu. Em tempo: no idioma japonês, a palavra sake abrange bebidas alcoólicas em geral. O nihonshu é, na verdade, o fermentado à base de arroz comumente chamado de saquê no Brasil.

 

Inspirado no Pimm’s No. 1 Summer Cup, um tipo de drinque de verão inglês, o No. 1 Cup é servido nos tradicionais copinhos de saquê de 180 ml, os cup sake, que ajudam a contar a história da bebida no Japão. Lançada em 10 de outubro de 1964, dia da abertura dos primeiros Jogos Olímpicos de Tóquio, a peça pioneira foi a One Cup Ozeki, que contribuiu para trazer praticidade ao nihonshu, até então, consumido basicamente em mesas de bar, servido em frascos e cuias de porcelana. Até hoje, o cup sake é considerado um ícone da cultura popular japonesa por reunir charme estético, praticidade e baixo custo. A bebida pode ser facilmente encontrada em lojas de conveniência, por exemplo.

No. 1 Cup: drink inglês com embalagem japonesa

Por outro lado, a acessibilidade e a popularidade do cup sake acabaram colando no nihonshu o estigma de bebida barata e sem sofisticação. Por isso, o No. 1 Cup me soou quase revolucionário, por ser a releitura de uma bebida outrora renegada, mas agora transformada em um coquetel de alto nível.

De volta à minha jornada. Feliz com a mistura executada com maestria, equilibrando sabores doce, umami, florais e de especiarias, pergunto ao Pae e ao gerente Yuya Nagamine se alguém já havia consumido todos os drinques no menu em uma noite. Diante da negativa (e do espanto) me ocorreu um pensamento: “é hora de fazer história!”. Ou seja, estava a 17 drinques da maior façanha etílica da minha vida.

 

O lugar para isso não foi escolhido à toa: o Guzzle é um dos empreendimentos do premiadíssimo bartender Shingo Gokan, fundador do SG Group e eleito a oitava pessoa mais influente na indústria de bares em 2020 pela revista especializada Drinks International, uma das mais relevantes no meio.

 

Um dos prodígios de Gokan é a forma como ele se inspira em pratos da culinária japonesa em suas criações. O menu do Guzzle é uma ótima amostra disso, com drinques como o Bento on the Rocks, uma referência ao hinomaru bento, estilo simples de marmita japonesa preenchida apenas por arroz branco e um umeboshi, a ameixa japonesa em conserva, no centro. O preparo se tornou popular durante a Segunda Guerra Mundial, época de grande escassez de alimentos no país – e também por lembrar a bandeira do Japão. O coquetel, por sua vez, leva shochu (destilado típico do Japão) de arroz, umeshu (licor de ameixa japonesa) e sal. Como guarnição, um karikari ume (conserva de ameixa japonesa de textura crocante).

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Takoyaki Blood Mary: tem um polvo no meu copo

Como o nome sugere, o Takoyaki Blood Mary é inspirado no popular takoyaki, bolinho recheado de polvo e coberto por molho escuro e katsuobushi (lascas de peixe bonito seco). A receita nasceu em Osaka, considerada pelos japoneses “a cozinha na nação” desde o Período Edo (1603 - 1868) e conhecida até hoje por ter a melhor comida de rua do país. Composta por vodca, suco de tomate amarelo de Hokkaido, beni shoga (gengibre conservado em vinagre de ameixa japonesa e shissô vermelho), molho de Osaka e guarnecida por um pedaço de polvo cozido, a interpretação do Guzzle foi outro destaque da noite.

O coquetel derradeiro foi o Sexy Colada, uma piña colada frozen servida no próprio abacaxi. Não deu tempo (ou seria a bebedeira?) de sentir falta do guarda-chuva que costuma enfeitar a bebida – nessa versão, uma sombrinha no estilo japonês em tamanho real é trazida por um membro da equipe para coroar a experiência. Depois de oito horas de conversas com novos amigos de balcão, regadas a ótimos coquetéis, fecho a conta com meu álbum de figurinhas completo.

Expansão etílica

Inaugurado em 2018 em Shibuya, o The SG Club abrange três ambientes com propostas diferentes: o Guzzle, mais casual, o Sip, clássico e sofisticado no melhor estilo speakeasy, e o Savor, restrito a membros que pagam 180 000 ienes por um título vitalício.

 

O fundador Shingo Gokan tem ainda sob seu comando os conceituados Speak Low, Sober Company (eleito o melhor restaurante bar do mundo em 2020 pelo Tales of the Cocktail, maior festival do setor) e The Odd Couple (em sociedade com Steve Schnider, bartender principal do incensado Employees Only, de Nova York), todos em Xangai. Gokan foi a primeira pessoa a ter simultaneamente quatro bares na lista dos 50 melhores da Ásia, em 2020.

Em Tóquio, Gokan também está frente do elegante The Bellwood,

capitaneado pelo bartender Atsushi Suzuki, campeão mundial da competição Chivas Masters em 2017. Suzuki, a propósito, esteve no Brasil em 2019, representando a Ásia em um evento secreto com cinco bartenders em plena Floresta Amazônica, e costuma usar café brasileiro em algumas criações. No início de 2021, o empresário inaugurou o SG Low, um izakaya fortemente influenciado pela gastronomia internacional.

Assim como os xoguns, os generais conquistadores da era feudal japonesa, Shingo Gokan tem seus planos expansionistas – eles incluem uma marca própria de shochu, a The SG Shochu, e uma inauguração além-mar, em Nova York.

Bar-conceito

“Como seria se alguns dos samurais que fizeram parte da primeira missão diplomática aos Estados Unidos, em 1860, tivessem aberto um bar no estilo nova-iorquino em plena Edo, o antigo nome de Tóquio?” A partir dessa pergunta, Shingo Gokan passou a formular o conceito do The SG Club.

 

A referência é o episódio que levou 77 samurais a Nova York após a assinatura do Tratado de Amizade e Comércio entre americanos e japoneses, de 1858, pós-reabertura do país depois de dois séculos de isolamento. Na ocasião, o governo japonês enviou uma missão diplomática aos Estados Unidos para a ratificar o acordo. Os escolhidos, membros do xogunato Tokugawa, seriam os primeiros a sair do arquipélago oficialmente desde de 1635.

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O tailandês Pae Ketumarn atrás do balcão do The SG Club

A viagem causou comoção em Nova York, com direito a banquetes e desfile de carruagens na Broadway. Diz-se que 500 mil pessoas, mais da metade da população da cidade na época, acompanharam o cortejo. A um quarteirão do extinto Metropolitan Hotel, onde a delegação japonesa ficou hospedada, ficava o bar de Jerry Thomas, considerado o pai da mixologia americana e autor de The Bartender Guide or How to Mix Drinks, considerado o primeiro livro de receitas de coquetéis da história. Embora a visita da comitiva ao bar de Thomas seja incerta, em uma das edições do livro o bartender publicou um preparo intitulado Japanese Cocktail – prova de que também fora impactado pela visita nipônica.

No subsolo

O Sip, no subsolo do The SG Club, tem uma pegada mais clássica que a do Guzzle. Logo na entrada, há um cantinho com serviço de engraxate e o salão faz o estilo speakeasy, os bares secretos para despistar a polícia no período da Lei Seca americana, entre os anos 1920 e 1930. Apesar da aura formal, o ambiente é aconchegante.

 

Uma das minhas histórias no bar envolve uma nova amiga de balcão,
que viera de Osaka mas nasceu em Nishio, na província de Aichi. Coincidentemente, Nishio fica pertinho de Hekinan, onde morei com um amigo que iniciava a carreira de bartender e me apresentou a paixão por bares.

 

Nós nos conhecemos no Guzzle, mas depois de um papo usei minha expertise de guia turístico para conduzí-la pelos outros ambientes do bar. Quem estava à frente do Sip dessa vez era Yuya Nagamine, que além de ser responsável pelos três ambientes é exímio bartender – além de fã de futebol e capitão do time de futsal em que jogo como goleiro.

 

Na carta de drinques, sou atraído pelo Brazil Dengaku, composto por shochu de cevada, berinjela assada e missô Haccho de Okazaki, cidade em Aichi onde já morei. A bebida é inspirada no prato nasu dengaku, uma berinjela grelhada, frita ou cozida sob um molho de missô – a brasilidade fica a cargo dos licores de cacau e banana. O coquetel Amazon to Kagoshima, que leva o The SG Shochu (de batata-doce, produzido na província de Kagoshima), suco de goiaba e licor de cacau, também me transportou ao Brasil. Os drinques da carta custam, em média, 2200 ienes.

 

Outra experiência curiosa no Sip foi participar da harmonização de 11 coquetéis que simula uma volta ao mundo com a companhia aérea fictícia SG Airways – o primeiro evento foi em agosto de 2020, inspirado pela impossibilidade de viajar no pós- pandemia. Quem estava no comando da aeronave imaginária era o próprio Shingo Gokan.

 

Todas as criações tiveram como base um dos três tipos de The SG Shochu (arroz, cevada e batata-doce) e foram harmonizadas com receitas do chef Atsushi Furukawa, que dá um toque japonês aos pratos típicos internacionais. Nessa noite, foram servidos, por exemplo, tartar de polvo com ouriço-do-mar e tzatzikiz (molho de iogurte e pepino) e jamón ibérico com natto (soja fermentada) amanteigado. Um dos pontos altos foi a degustação às cegas de um coquetel inspirado no Blinde Kuh, restaurante suíço onde as refeições são feitas no escuro. As sobremesas levam a assinatura de Tomonari Konbu, da confeitaria francesa Un Grain. Minha preferida foi a panacota de speculoos (uma bolacha natalina belga) com um sorbet de cerveja Ale belga e toranja.

As duas últimas paradas são Nova York, com um shot de shochu mais chips de batata-doce e cheesecake com bacon e, finalmente, Havana, representada no exclusivo Savor.

SG Airways: uma parada em cada taça

Só para membros

Havana, 1860. A bordo do navio americano USS Roanoke, a delegação japonesa decide aportar em Cuba, antes de seguir viagem até Nova York. Se isso realmente tivesse acontecido, como seria um bar cubano em Edo a partir da experiência dos samurais na ilha de Fidel? A interpretação de Shingo Gokan para o episódio fictício se materializou no Savor. No primeiro andar do The SG Club, o bar e clube de charutos é restrito a membros dispostos a pagar 180 000 ienes por um título vitalício, mais cerca de 1700 por drinque.

Após cruzar uma porta preta, um pequeno balcão com quatro cadeiras é emoldurado por uma reprodução de A Grande Onda de Kanagawa, de Katsushisa Hokusai, uma obra-prima do ukiyo-e (um estilo de xilogravura japonesa). A decoração sóbria inclui ambientes com uma mesa e sofás para quatro pessoas e outro maior, para  até oito pessoas. Nas paredes, mais reproduções de Hokusai. A música fica a cargo de uma vitrola manejada pelo bartender anfitrião, o experiente Takahiro Watanabe. Profissional desde 1988, Watanabe acumula troféus como o Beefeater International Bartender Challenge Japan e o CHIVAS Barmasters Tokyo.

O drinque apresentado por ele é o Farmer’s Mojito, que leva rum Bacardi, shochu de arroz, dois tipos de limão, ervas da conceituada Fazenda Kajiya e mel de abelhas orgânico da Fazenda Ome, de Tóquio – ilustrando os ingredientes de alta qualidade usado nos drinques. Para acompanhar, Taka-san, como eu o chamo respeitosamente, traz a carta de charutos cubanos: minha escolha é um Montecristo No 4, um dos mais vendidos no mundo.

 

Entre uma baforada e outra, descobri que Taka-san adora artes marciais, como eu, e já participou de lutas amadoras de kickboxing – até combinamos de assistir a uma competição juntos assim que possível. Mas, enquanto a pandemia não acaba, me permiti provar releituras de clássicos cubanos como o Ginjo Daiquiri, com rum Bacardi, shochu de arroz, suco de limão e xarope de saquê. Com tantas visitas ao The SG Club, se você não me encontrar por lá, ao menos vai saber quem é o maluco que provou todos os drinques em uma noite.

Serviço

THE SG CLUB

Tokyo-to Shibuya-ku Jinnan 1-7-8

facebook.com (em japonês)

Radicado no Japão desde 1998, RAPHAEL TANAKA vive na capital há 5 anos. Aficionado por bares e restaurantes,é guia turístico na agência Tabiji em Tóquio e outras regiões do país.

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