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Doburoku: o 'saquê' turvo dos deuses

Atualizado: 23 de set.

Bebida que até pouco tempo tinha produção limitada a santuários vive hype na capital japonesa


com fotografias de Cindy Bissig


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No pequeno prédio de madeira da estação de Ichibataguchi o silêncio só é quebrado pelo aviso de partida do trem elétrico do qual eu acabo de desembarcar. O diminuto casario no entorno nem chega a esconder a vocação do local: a agricultura. Campos verdes ocupam a paisagem por todos os lados, cortados por uma ou duas ruas de asfalto. Era só eu e a minha mala para caminhar até um santuário xintoísta que me diz o Google Maps fica a 14 minutos a pé da estação. O que o aplicativo não mostra é que, depois de caminhar pelo asfalto sem calçada — e praticamente sem trânsito — eu precisaria cruzar um corredor de terra batida, entre dois campos de arroz. Com uma mala de rodinhas.


Naquele dia 13 de outubro de 2018, eu atravessava os dois portais do Santuário Saka para conhecer o doburoku, uma espécie de saquê ancestral não pasteurizado, raríssimo de ser encontrado. Naquela época, sua comercialização era estritamente proibida. A produção, antes amplamente difundida entre as famílias das zonas rurais, estava limitada a um punhado de santuários xintoístas Japão a fora, que usavam a bebida em eventos religiosos anuais como o que eu estava indo participar. Tudo isso por conta de uma legislação do século 19 que pretendia garantir a segurança da produção de bebidas alcoólicas e visava aumentar a arrecadação de impostos.


Textura leitosa e sabores frescos: este é o doburoku (foto: Cindy Bissig)
Textura leitosa e sabores frescos: este é o doburoku (foto: Cindy Bissig)

Corta para Tóquio, ano de 2025. Em pleno coração financeiro da capital japonesa, sento com um amigo para beber e jogar conversa fora num barzinho de Kabutocho, bairro que vem despontando como o novo ponto de encontro dos toquiotas descolados. No cardápio, o doburoku produzido no próprio local aparece com destaque e em diversas variedades. E este local, a Heiwa Doburoku Kabutocho Brewery, é pioneiro mas não é único. Alguns anos e uma pequena mudança na legislação depois daquela minha experiência no interior da província de Shimane e já não é mais preciso atravessar o país, numa data específica, para ter acesso ao sabor refrescante e à textura cremosa desta bebida ancestral.


Mas, afinal, o que é o doburoku?


Questões de ordem

O saquê clássico que conhecemos tem sua produção regulada de forma rígida pela legislação. Uma das etapas indispensáveis do processo é a filtragem, que deixa o fermentado bem cristalino. A única exceção é para os saquês do tipo nigori, nos quais resíduos finos dão uma coloração leitosa à bebida.


No doburoku, o processo é o mesmo do saquê com um detalhe: a filtragem pode ser dispensada por completo. Isso quer dizer que pedaços do arroz usados na produção podem continuar incorporados à bebida. Em alguns casos, a bebida chega a ser filtrada mas de forma menos radical e o resultado final é bem mais leitoso do que o saquê nigori. Além disso, o doburoku é servido fresco. À sua textura cremosa se junta um sabor que combina dulçor e acidez, muitas vezes com notas naturais de iogurte.


Produção de doburoku na Konohanano (foto: Cindy Bissig)
Produção de doburoku na Konohanano (foto: Cindy Bissig)

Como não há tantas restrições na produção do doburoku, as produtoras estão indo à loucura. Para atrair o público, elas vêm acrescentando sabores que vão das frutas convencionais — morango, banana, abacaxi — a temperos e especiarias. Em outras palavras, dependendo do produto a diferença entre a bebida e um milk shake alcoólico pode ser quase nenhuma.


Da estação de trem ao bar de coquetelaria

A nova onda do doburoku pode ser associada indiretamente ao movimento das microcervejarias. O saquê como conhecemos é produzido por fábricas com tradições que passam a casa dos cem anos, portadoras de licenças contadas a dedo que só podem ser transferidas seguindo rígidos critérios. Essas fábricas têm autorização de produzir bebidas em grande quantidade, para um mercado mais amplo. Já o doburoku entra numa categoria de bebidas que são reguladas por uma legislação relativamente nova, que permite a produção em pequenas quantidades.


Sendo assim, a maior parte das fábricas de doburoku são de pequeno porte e, como as suas correspondentes no mundo das loiras geladas, a produção delas fica bem perto do consumidor. Às vezes, tão próxima que chega até a ser insuspeita. Por exemplo, a Tokyo Station Sake Brewery fica como o nome diz, na estação de Tóquio. Literalmente. O espaço de produção das garrafinhas de 300ml da empresa fica numa enorme área de comércio no subsolo da parada ferroviária, anexa a uma loja de saquês. Ou seja, o produto recém saído da fábrica está ao alcance dos mais de 400 mil passageiros diários de uma das estações de trem mais movimentadas do mundo. Quem embarca no trem-bala Shinkansen entre a capital japonesa e alguma outra cidade do país pode viajar confortavelmente no seu assento bebendo doburoku fresco a quase 300 km/h. Além disso, é possível bebericar os rótulos da fábrica — o clássico e o sazonal de fruta — no próprio local.


Doburoku da Tokyo Station Brewery, produzido na estação de Tóquio (imagem: divulgação)
Doburoku da Tokyo Station Brewery, produzido na estação de Tóquio (imagem: divulgação)

Mais recente, mas nem por isso menos popular, a Kononohano escolheu o popular bairro de Asakusa para abrir a sua fábrica que produz, além do doburoku, saquês clássicos, alguns deles em parcerias com produtoras mais tradicionais como a Tsuchida. Os rótulos da fábrica estão disponíveis no anexo All (W)Right - Sake Place, que também funciona como restaurante.


O doburoku também vem ganhando espaço como ingrediente na coquetelaria. Seus sabores marcantes, quase sempre com leve dulçor e acidez, têm sido inspiração para drinques em espaços como o Folklore, o único bar do ramo em Tóquio especializado nos kokushu, as bebidas alcoólicas típicas do Japão, como o saquê e o shochu. Aqui eles criaram o Origin, um elegante coquetel no qual o doburoku é mixado com vodka infundida em pera e mel. Trabalhos como estes mostram a versatilidade da bebida.


Origin: coquetel do bar Folklore (foto: Roberto Maxwell)
Origin: coquetel do bar Folklore (foto: Roberto Maxwell)

De volta às raizes

Doburoku feito em casa é algo que dificilmente será visto como algo comum no Japão no curto ou médio prazo. Porém, a bebida continua sendo dignificada em santuários xintoístas, com a produção monástica sendo servida em eventos sagrados como os Doburoku Matsuri, festivais com séculos de história.


O Santuário Saka, citado na abertura deste artigo, realiza anualmente o seu no dia 13 de outubro. A origem do festival é um evento lendário registrado no Izumo-no-kuni Fudoki, um compêndio do século 8 que fala sobre a cultura e a geografia da atual província de Shimane. No documento há uma lenda que diz que os deuses se reuniram às margens de um rio e montaram uma cozinha para preparar comidas e bebidas. A partir da lenda surgiu no local a expressão sakamizuki, que quer dizer, em termos bem atuais e profanos, “encontro para encher a cara”, e o topônimo Saka, dado ao santuário. O evento é discreto, como o pequeno santuário que fica no alto de uma colina. O visitante deixa uma contribuição simbólica e recebe um copinho do tipo ochoko para beber à vontade, embalado pelas apresentações do kagura, uma espécie de performance musical dedicada aos deuses.


Cada vez mais fábricas estão colocando no mercado suas versões de doburoku (foto: Cindy Bissig)
Cada vez mais fábricas estão colocando no mercado suas versões de doburoku (foto: Cindy Bissig)

Outro famoso Doburoku Matsuri é o do Santuário Hachimangu de Shirakawago, na província de Gifu. O espaço fica a vila de Ogimachi que é tombada como Patrimônio Histórico da Humanidade pela UNESCO. Aqui, o festival é realizado nos dias 14 e 15 de outubro, como uma celebração pelo fim das colheitas. Procissões com os andores japoneses (mikoshi), música e a dança dos leões são embalados com altas doses do doburoku produzido pelos monges do santuário, que pode ser consumido mediante uma pequena oferta em dinheiro.


Festivais como esses são uma oportunidade única de interação e confraternização com os locais e tanto neles, como nas mesas de bar, o doburoku, com seus sabores carregados de história, cumpre o seu papel de agregar e unir as pessoas. E como ele é uma bebida não pasteurizada, o recomendado é o seu consumo imediato. Sendo assim, beber doburoku, pelo menos por enquanto, é algo que você só pode fazer durante a sua viagem ao Japão.



SERVIÇO

Santuário Saka

festival anual de doburoku no dia 13 de outubro

Shimane-ken Izumo-shi Kozakaicho 108 [mapa]

entrada franca


Heiwa Doburoku Kabutocho Brewery

bar especializado em doburoku artesanal

Tokyo-to Chuo-ku Nihonbashi Kabutocho 8-5-1 [mapa]

¥¥

www.heiwashuzou.co.jp (somente em japonês)


Tokyo Station Sake Brewery

microfábrica e bar de doburoku anexo à loja de saquê Hasegawa

Tokyo-to Chiyoda-ku Marunouchi 1-9-1 Tokyo Station Gransta B1 Zona Square Zero [mapa]

¥¥


All (W)right – sake place –

bar anexo à Konohanano, com doburoku produzido no local e seleção de saquês

Tokyo-to Taito-ku Komagata 2-5-5 Komiya Building B1 [mapa]

¥¥


Folklore

mixologia com saquê e shōchū em ambiente intimista

Tokyo-to Chiyoda-ku Uchisaiwaicho 1-7-1 Hibiya OKUROJI G27 [mapa]

¥¥

Santuário Shirakawa Hachiman

festival anual do doburoku em 14 e 15 de outubro

Gifu-ken Ono-gun Shirakawa-mura Ogimachi 559 [mapa]

entrada franca



Cindy Bissig contribuiu com fotos para esta reportagem. Ela é sommelière de saquê e presidente do Tokyo Sake Challenge. Atua, ainda, como Embaixadora do Doburoku e coapresenta o podcast Sake On Air. Também é fotógrafa e escritora de gastronomia e viagens para revistas internacionais. Siga no Instagram @sakenomad.

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