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Um guia sobre o saquê, o fermentado nacional japonês

Bebida já ganhou o mundo, mas passa por mudanças para reconquistar o coração dos japoneses



É incontestável: a preferência nacional dos japoneses é a cerveja. Nem sempre gelada, a loira tomou de assalto o paladar dos bebuns de todo o planeta e no Japão não seria diferente. Na Terra do Sol Nascente, o saquê perdeu muito terreno, apesar de ter tomado o mundo de assalto nos últimos anos. O fermentado, no entanto, não está deixando barato: do mesmo modo que ocorre no Brasil com a cachaça, os produtores tradicionais estão em ponto de reação, tentando colocar de novo o saquê no pódio e no coração dos japoneses. Em todo o país, têm surgido pessoas motivadas na intenção de resgatar o consumo da bebida e elas são unânimes na conclusão de que um dos motivos pelos quais muitos japoneses, em especial os jovens, não consomem esses produtos é a falta de conhecimento.


Já no Brasil, o consumo de saquê anda subindo nos últimos anos, mesmo com a pandemia. O renovado interesse tem se dado pela presença de novos e antigos nomes no mercado, que vêm se organizando para produzir e compartilhar informações sobre a bebida e promover seu consumo de forma consciente.


"Todas" as bebidas do Japão

Fora do Japão, sake (assim como sua versão aportuguesada ‘saquê’) muitas vezes é usado como um nome genérico para todas as bebidas alcoólicas tradicionais do país. No entanto, existem três tipos de bebidas completamente diferentes que eram colocadas sob esse rótulo. O nihonshu, fermentado feito de arroz, talvez seja o goró japonês mais consumido fora do Japão. A bebida costuma ter entre 16 e 18 por cento de teor alcóolico, o mais alto em sua categoria etílica que inclui, ainda, o vinho e a cerveja.


Além do nihonshu, os japoneses produzem tradicionalmente o shochu e o awamori. O primeiro é destilado e pode ser feito com diversos ingredientes, como arroz, cevada, batata-doce, trigo sarraceno e kokuto, um tipo de açúcar japonês que pode ser comparado com o mascavo. O teor alcoólico fica entre 25 e 35 por cento de acordo com o método de produção. Já o awamori, típico da província de Okinawa, é um destilado feito com um tipo específico de arroz, da espécie Oryza sativa, e tem entre 30 a 43 por cento de teor alcóolico. Cada uma dessas variedades é um universo em si mesmo e merece uma reportagem só para ela. Por isso, nesta edição, a gente se foca no nihonshu que é o a indústria passou, finalmente, a definir como o que temos que chamar de saquê fora do Japão.


Produzindo o saquê

O arroz é a matéria-prima principal do saquê. Mas não é qualquer arroz. Para fazer a bebida é usado um tipo especial chamado genericamente de sakamai. Ele difere do gohan (lê-se 'go-ran') nosso de cada dia, o arroz de mesa consumido no Japão, por ser mais gordinho e conter uma maior reserva de amido que, neste caso, fica no centro do grão. Como o amido é o principal 'ingrediente' na produção do açúcar que vai virar álcool na produção de saquê, quanto mais acessível, melhor. Para isso, o grão é polido e o grau de polimento vai determinar o quão refinada será a bebida final.


Quando o saquê é produzido com 50% ou menos do grão de arroz, ele é chamado de daiginjo (lê-se ‘dai-guin-jô’). Se a proporção usada de arroz fica entre mais de 50% e até 60%, a bebida ganha a classificação de ginjo (lê-se ‘guin-jô’). Em ambos os casos, o saquê tende a ser frutado e aromático.


Nigorizake: as partes sólidas da fermentação ainda permanecem na bebida (imagem: cedida)

Onipresente bolor

Quando a gente se muda para o Japão, parece que descobre magicamente uma categoria de seres vivos que só tinha visto em desenhos animados: os bolores. Não que eles não estejam presentes no Brasil, muito pelo contrário. Acontece que lá temos tanto horror aos fungos que praticamente os desprezamos.


No Japão, essa categoria de organismos ganha um outro status. Dezenas de fungos comestíveis são utilizados nas refeições, por exemplo. Mas eles são apenas a ponta micológica do iceberg da cultura gastronômica japonesa. Daquele shoyu inocente que a gente usa para dar sabor no yakissoba até as onipresentes conservas do tipo tsukemono, um sem número das comidas tradicionais do país é fermentada, ou seja, chega às nossas mesas depois da ação de algum fungo.


Em comum com o shoyu e o missô — a onipresente pasta de soja —, o saquê tem o Aspergillus oryzae, um fungo conhecido em japonês como koji. A espécie é tão importante para o Japão que ganhou o status de fungo nacional. Mas ela não atua sozinha na produção do saquê. Na verdade, o koji tem uma função bem específica na fabricação da bebida. Ele é usado para o processo chamado de sacarificação, ou seja, o momento em que o amido presente no arroz é transformado em açúcar.



Para que o açúcar se transforme em álcool, entra em ação alguma levedura, uma outra categoria de fungos, usada também na produção de cerveja e do vinho. A levedura também detona agentes contaminantes que possam tentar se dar bem no mosto — a massa de fermentação, rica em nutrientes. Além disso, são elas quem incrementam os aromas. Diferentes leveduras dão vida a diferentes saquês. Com a sacarificação e a ação das leveduras ocorrendo simultaneamente no mosto, dizemos que no saquê ocorre um processo chamado de fermentação múltipla paralela.


Arroz inoculado com koji (imagem: cedida)

As etapas do processo

A produção do saquê começa com o polimento e a lavagem do arroz. Em seguida, o cereal é imerso em água tempo suficiente para absorver cerca de 30% do seu peso. Depois, ele é retirado da imersão e cozido no vapor por cerca de uma hora. Após o cozimento, parte do arroz é inoculada com o koji. Leva cerca de dois dias para o arroz ser coberto pelo fungo num espaço de armazenamento com temperatura a cerca de 30 graus e umidade entre 50 e 80 por cento.


Fábrica de saquê, após a lavagem do arroz (foto: Roberto Maxwell)

Depois, é a hora de produzir o moto, uma espécie de fermento, no qual é incluído o arroz inoculado e já colonizado pelo koji, as leveduras e água. Com essa cultura-mãe pronta, vai se construindo o mosto moromi, japonês —, com a adição de água e do restante do arroz cozido. A fermentação ocorre por entre três e cinco semanas, numa temperatura que varia entre 8 e 18 graus. Quanto menor a temperatura, maior é o tempo necessário para a fermentação. O saquê que é fermentado por mais tempo tende a ficar menos ácido e com aromas e sabores mais frutados.


Depois da fermentação, o moromi passa por um processo de filtragem por pressão. Ele é colocado num saco de pano e pressionado por uma máquina ou à mão (em produções bem artesanais) para a separação de líquidos e sólidos. A massa formada pelo arroz que não se desintegrou na etapa anterior é chamada de sakekasu e contêm cerca de 8% do seu peso em álcool. O sakekasu é considerado altamente nutritivo e pode ser consumido puro ou usado em receitas e para fazer conservas de legumes. Ele também costuma figurar como matéria-prima para fazer um dos muitos tipos de shochu.


Antes da separação do moromi, é possível adicionar álcool à mistura. De um modo geral, essa adição extra não tem como função principal aumentar o teor alcoólico da bebida. A ideia, em especial em produtos de alta qualidade, é realçar os sabores e, também, aumentar o tempo de vida útil do produto. Os saquês que não recebem adição de álcool são chamados de junmai, ou seja, ‘puro arroz’ e costumam ser mais valorizados no mercado. Mas a dose extra de álcool não quer dizer o saquê foi batizado e que, por isso, sua qualidade se torna automaticamente inferior. Tudo vai depender da maestria do produtor na alquimia dos sabores.


Usando um tecido um pouco mais grosseiro, é possível filtrar menos o moromi, deixando passar mais substância sólida para o líquido. Este saquê, de cor esbranquiçada e parecendo um leite meio ralo, é chamado de nigorizake.


Depois do primeiro processo de filtragem, o saquê passa por decantação. O líquido fica em repouso em temperatura baixa e, com isso, as partículas misturadas se assentam no fundo do recipiente. Para garantir uma coloração cristalina, o processo de filtragem pode ser repetido outras vezes.


O saquê também é diluído em água, para diminuir o teor alcoólico, e pasteurizado, ou seja, aquecido a baixa temperatura, como uma forma de esterilizá-lo. Normalmente, este processo ocorre duas vezes: uma ao final da filtragem principal e outra antes do engarrafamento. Isso porque o saquê, na diluição, a água inserida pode trazer criaturas não desejadas para a bebida.


Garrafas de saquê à venda em uma fábrica no Japão (foto: Roberto Maxwell)

Alguns fabricantes reservam uma parte da produção do ano para ser comercializada sem pasteurização. Essa bebida é chamada de namazake. Esse saquê não pasteurizado costuma ter um sabor mais refrescante e precisa ficar conservado em geladeira e consumido mais rapidamente.


Antes da comercialização, o saquê passa por um período de descanso, que pode levar de alguns meses a um ano. Por isso, costuma-se dizer que o saquê é uma bebida jovem e que deve ser consumida o mais rápido possível.


Porém, mais recentemente, diversas fábricas começaram a experimentar o envelhecimento do fermentado, com resultados bastante interessantes. Esse tipo de saquê é chamado de koshu. O processo de maturação é quase sempre feito na própria garrafa, embora algumas fábricas estejam inovando e introduzindo barris. O koshu costuma ter aromas e sabores de café, caramelo, mel e nozes.


As diversas experiências buscam aproximar os japoneses do saquê e apresentar novas possibilidades ao público estrangeiro. Tudo isso vem enriquecendo ainda mais o universo da bebida.


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