Distrito no sul da cidade tem longa história e grande importância na produção do fermentado japonês
Kyoto é, sem dúvida, um baú das tradições culturais do Japão. Depois de mil anos de história como capital do país, não podia mesmo ser diferente. Templos e santuários, gastronomia, história são alguns dos muitos atrativos da cidade que recebe dezenas de milhares de visitantes por ano.
São poucos, porém, os que visitam um dos mais interessantes pontos da cidade. Fushimi fica no sul de Quioto, já na divisa da antiga capital com Uji, a terra do chá na região de Kansai. Se o nome não te soa estranho é porque você já o ouviu em algum lugar. Sim, o local tem tudo a ver com o famoso Fushimi Inari Taisha. Dedicado à divindade do arroz, o santuário fica numa área que floresceu por conta das plantações do cereal. As centenas de portais vermelhos, que são uma das imagens icônicas da cidade, ficam a apenas cinco quilômetros de distância da região produtora de saquê que também leva o nome do distrito.
Água boa
Fushimi tem sua história conectada a um antigo castelo construído em 1592 para servir de retiro para o então recém aposentado daimyō Toyotomi Hideyoshi. A primeira versão do castelo sucumbiu a um terremoto, sendo substituída por outra construção até o seu total desmantelamento em 1623. Mesmo com um curto período de existência, a residência fortificada trouxe enorme desenvolvimento para o seu entorno, já favorecido pela confluência de três rios, condição excelente para o transporte de bens entre as duas grandes cidades da região: Kyoto e Osaka.
Além de serventia para a navegação, as águas de Fushimi eram consideradas de alta qualidade para o consumo e para a produção de arroz. Com matéria-prima de qualidade acessível, consumidores em potencial por perto e condições de transporte mais que favoráveis, foi um pulo para que a produção de saquê se desenvolvesse e prosperasse na região.
Produção de alcance internacional
Representante dessa época de pujança, a Gekkeikan é uma das maiores produtoras de saquê do Japão. Fundada em 1637, a companhia também é considerada um dos mais antigos empreendimentos familiares do mundo ainda em atividade. Um pouco dessa história que atravessa cinco séculos está no museu montado pela empresa em uma fábrica desativada, apenas um dos muito bem preservados prédios centenários do bairro. Na entrada de ¥600 estão incluídos, além da visita ao museu, uma pequena garrafa de saquê ou cartão postal, a degustação e a possibilidade de visita à atual fábrica da empresa, localizada num prédio vizinho. Para participar da atividade, no entanto, é preciso fazer reserva pelo site da fábrica com pelo menos um dia de antecedência.
Outra produtora que vale a visita é a Kizakura Kappa Country que, além do saquê, produz cervejas artesanais e outras bebidas. Os saquês, incluindo o namazake, podem ser degustados no local e a empresa oferece, ainda, uma visita guiada pelas fábricas que também necessita de reserva por telefone (075-644-4488). A tour é gratuita mas a degustação é paga. Nas dependências da Kizakura também fica um restaurante e um pequeno museu sobre o kappa, a criatura lendária japonesa que vive nos rios.
Entre uma visita e outra às fábricas, é possível provar a água do local numa fonte ao lado do restaurante Torisei chamada Shiragiku, ou seja, “crisântemo branco”. O nome poético deriva das palavras de um venerável homem numa conhecida lenda. A água, que fica disponível gratuitamente 24 horas por dia, atrai não somente os turistas mas, também, gente do bairro e é considerada uma das melhores da região. Como ela vem da fonte subterrânea geladinha, é bom preparar ter uma garrafa para encher e matar a sede depois.
Além de caminhar pelas ruas, é possível apreciar os belos prédios centenários do local a partir de passeios de barco nos canais que cortam o bairro. As viagens duram entre 40 e 50 minutos e são realizadas em antigos embarcações de madeira semelhantes às que cruzavam o rio na época em que o comércio dominava a região. Os passeios custam ¥1500 para adultos e são realizados por dois tipos de barcos diferentes, com diversos horários de partida ao longo do dia. Reservas podem ser feitas pelo telefone 075-623-1030.
Relíquia cristã escondida
Outro local que vale a visita é o Templo Chokenji, que fica às margens do canal, no caminho para a estação de Chushojima. Dedicado à Benzaiten, a única entidade do sexo feminino no panteão dos Sete Deuses da Sorte, o pequeno templo é uma jóia, com suas paredes avermelhadas e enormes nogueiras. Mas a maior surpresa nem chega a ser nada relacionado à deusa das águas. Quase que escondida no jardim do templo fica uma lanterna de pedra que têm ao lado uma pequena placa de madeira em japonês que a identifica como “Lanterna de Maria”.
Quem olha a estrutura de perto, consegue localizar, no pé da lanterna, um pequeno entalhe no formato de uma pessoa fazendo uma prece. Segundo a placa no templo, trata-se de uma relíquia dos kakure kurishitan, japoneses adeptos do cristianismo que praticavam a religião em segredo, numa época em que ela era proibida no Japão. A lanterna foi encontrada há algumas décadas no jardim de uma antiga casa de chá da região onde reuniões privadas eram realizadas. Acredita-se que algum dos grupos que se encontrava no estabelecimento era formado por kakure krishitan que tenham sido responsáveis pela confecção da lanterna.
Fushimi, aliás, tem uma história especial com o cristianismo. Takayama Ukon, um samurai convertido à religião, foi um dos homens mais poderosos da localidade. Ao professar a fé cristã, Takayama acabou sendo banido e tendo que deixar o Japão para se exilar nas Filipinas. Batizado, ele ganhou o nome de Justo e praticou o cristianismo até a morte. Beatificado em 2017, Dom Justo Takayama é considerado o único samurai beato da história.
BOX 1
SERVIÇO
A estação mais conveniente para visitar o distrito de produção de saquê de Fushimi é Chushojima da linha Keihan. O Templo Chokenji e um dos locais para embarcar no passeio pelo rio ficam a 4 minutos a pé da estação. Já as fábricas estão a menos de 5 minutos de distância do templo.
Este texto foi revisado e atualizado a partir do original publicado na Revista Guia JP.
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