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Ellie e seu olhar privilegiado sobre o Japão

De volta ao Brasil, fotógrafa por trás do sucesso do canal OlaGuti conta sua história de duas décadas na Terra do Sol Nascente


C0m0 muitos brasileiros que vieram para o Japão, a família de Eliana Lopes, 30, pensou que sua estadia na Terra do Sol Nascente seria curta. Vivendo em cidades com grandes concentrações de brasileiros, ela fez amigos e concluiu os estudos, apesar das dificuldades. No final da adolescência, descobriu que queria mais.


Mudou-se primeiro para Nagoya, estudou inglês e foi se distanciando daquele universo onde tinha crescido. Em duas décadas, a menina virou fotógrafa, com clientes de alto nível no disputado mercado da capital japonesa. Além disso, firmou-se como produtora de conteúdo, criando e movimentando um dos mais bem sucedidos canais sobre o Japão feitos em português, o OlaGUTI, com mais de 300 mil assinantes no YouTube e estrelado pelo simpático Guti, um japonês apaixonado pelo Brasil com quem ela se casou.


Nesta entrevista, Ellie Lopes conta como sobre a sua vida no Japão, sobre a viagem de 16 mil quilômetros que fez com o marido e parceiro de trabalho pelo país, sobre o retorno ao Brasil e os livros que lançou sobre a experiência de duas décadas na Terra do Sol Nascente.

Como você foi parar no Japão? Qual a tua origem familiar?

Sou sansei, terceira geração [de descendentes de japoneses] por parte de mãe e meu pai é brasileiro [sem origem japonesa]. No final de 2003, minha família decidiu ir para o Japão para ficar três ou quatro anos, apenas para juntar um dinheiro e voltar para o Brasil. Porém, acabamos ficando por quase 20 anos. Nasci no interior de São Paulo, na divisa com o Mato Grosso do Sul, em uma chácara com plantação de coco. Cresci na roça e fui uma criança feliz, sempre em contato com a natureza.


Ellie e Guti sob as cerejeiras em flor na província de Tochigi (foto: Ellie/cedida)
Como você e o Guti se conheceram? O que você viu nele que te chamou a atenção?

Nós nos conhecemos em um bar internacional em Osaka, onde tocava músicas de vários países. Num dado momento, tocou uma música brasileira da qual ele conhecia o refrão. Ele tinha acabado de se recuperar de um acidente e estava muito animado “cantando” essa música. Achei bacana e, ao mesmo tempo, estranho ver um japonês cantado em português. Foi assim que começamos a conversar. No final ele contou que nunca tinha tido contato com o Brasil e nem com a cultura brasileira. Ele conhecia apenas aquela música, por ser muito famosa na época.

Que música era essa?

A música era do Michel Teló, "Ai se eu te pego".

Em que momento da vida de vocês surgiu a ideia de viajar 16 mil quilômetros pelo Japão?

Sempre gostamos de viajar, mas durante a pandemia, obviamente, tudo ficou limitado. Meus trabalhos foram cancelados e o Guti começou a trabalhar em casa. Passando muito tempo juntos, começamos assistir e consumir muitas coisas sobre viagem, pela internet. Na verdade, a ideia inicial era rodar o mundo, o que, na realidade, não se mostrou assim tão fácil.


Um pouco antes da pandemia já pensávamos vagamente em mudar de vida, mas nada concreto. Então, durante a pandemia surgiu o plano de tentar a vida no Brasil. Eu vivi no Brasil até os 10 anos de idade. Tinha memórias de criança, mas não conhecia o Brasil de verdade, mesmo depois de adulta. Por ter se casado comigo, o interesse do Guti pelo Brasil foi crescendo aos poucos.


Porém, pensamos que antes de viajar e morar no Brasil, precisávamos conhecer bem o país em que estávamos no momento, o Japão. Então, assim que a pandemia começou a acalmar, decidimos largar nossos trabalhos e apartamento, e compramos uma mini-van que se tornou nossa “casa” por sete meses enquanto rodamos o Japão. Terminando essa aventura, viemos para o Brasil.


No livro, registros do cotidiano do interior do Japão, com este na província de Yamagata (foto: Ellie/cedida)

Você estava indo bem na sua carreira fotográfica em Tóquio, algo que costuma ser um grande desafio. Como foi largar as conquistas que você teve para fazer essa viagem?

Foi difícil. Acredito que eu estava na minha melhor fase. Fui afetada pela pandemia, claro, mas eu estava fotografando com algumas grandes empresas como a Bose, a Asics, a JetStar Japan... Eu estava confiante na minha carreira e já tinha estabilidade. Durante a viagem, eu tentei manter alguns trabalhos como, por exemplo, o que eu fazia com a All Birds Japan, de fotografar os produtos em vários cenários do Japão. Porém, confesso que eu gostava da correria de trabalhos em Tóquio. Meu foco foi sempre fotografar pessoas. Depois que começamos com a viagem pelo Japão, eu foquei mais em fotografar o dia-a-dia e as paisagens, que são campos nos quais eu nunca tinha me aprofundado. Isso resultou em uma nova experiência e rendeu boas fotos que foram expostas por alguns dias na Embaixada do Brasil em Tóquio em janeiro deste ano.


Ellie em sua exposição fotográfica na Embaixada do Brasil em Tóquio (foto: divulgação)

Foram essas fotos que renderam o livro "16.000 Quilômetros de Carro Pelo Japão"?

Sim, exatamente.


Como esses registros foram sendo feitos?

O dia-a-dia viajando era muito bom, mas muito cansativo. Nossa “casa” era pequena e, por isso, tinha dias em que eu nem tocava na câmera. Em compensação, havia dias que eu acordava super inspirada e clicava centenas de fotos. A vida era corrida e as fotos requerem um pouco de edição para ficar com os tons de cores que eu gosto. Ao mesmo tempo, eu tinha que editar os vídeos que gravamos para o YouTube e isso consumia todo o meu tempo livre. Era raro eu conseguir atualizar as redes sociais com as minhas fotografias, mas no final eu consegui colocar tudo no livro. Isso que me deixou muito feliz. É muito bom ver as fotos impressas e não somente na pequena tela do celular.

Viajar pelo Japão, mesmo depois de tantos anos no país, envolve muitas descobertas. Tem alguma história que tenha te marcado muito durante a viagem e que te mostrou um Japão que você ainda não conhecia?

Conhecer Hokkaido, a província de origem do meu avô, foi muito emocionante. Minha tia-avó, com quem eu nunca tinha tido muito contato, me levou para conhecer a casa onde eles cresceram, o caminho que ele fazia até a escola, me contou sobre a infância deles… Isso foi muito emocionante para mim. É difícil falar de um único episódio porque foram muitos. Visitar Fukushima e a Escola Primária Arahama, em Iwate, que foram atingidas pelo tsunami em 2011 foram alguns deles. Ouvir os relatos das pessoas que sobreviveram foi muito impactante e mudou muito o meu jeito de pensar sobre algumas coisas. Aprendi que devemos ser gratos por estarmos vivos. Outro lugar muito legal, simples mas muito especial, foi visitar Kuroshima, que fica a cerca de 40 minutos de barco de Ishigaki, outra ilha na província de Okinawa. É uma pequena ilha que quase não tem sinal de internet. Lá tem cerca de duzentos habitantes e mais de duas mil vacas! Ficamos hospedados em uma pousada e passamos o dia andando de bicicleta e dentro do mar, além de brincar com as poucas crianças que moram na ilha, um lado do Japão que eu não fazia ideia que existia.


A fotógrafa registrou um campo de lavanda em Hokkaido, província de origem do avô (foto: Ellie/cedida)
Ao longo do caminho, vocês também tiveram vários encontros com brasileiros residentes no Japão. Como se davam esses encontros? Tem algum em específico que tenha te emocionado ou te marcado?

Durante a viagem sempre recebíamos mensagens de brasileiros, com dicas de turismo e convites, às vezes para passar a noite na casa deles. Muitas vezes aceitamos e tivemos momentos muito divertidos. Esses foram os primeiros contatos que tivemos com os seguidores fora da internet. Um encontro que me marcou foi com um casal que conhecemos na província de Aomori, onde quase não há moradores brasileiros. Eles nos acolheram como filhos e ficamos muito comovidos com o carinho, com a comida caseira e com o papo.


Além da viagem, você também lançou um livro de fotos e depoimentos de jovens descendentes de japoneses que vivem no Japão. O que te motivou a fazer esse livro?

É uma longa e complicada história que envolve mudança de país, cultura, a busca de uma identidade, se encontrar ou se reencontrar. É um mix de sentimentos que sempre tive… Eu cresci na comunidade brasileira no Japão, mas ao mesmo tempo nunca me senti à vontade, nem com os brasileiros, nem com os japoneses. Por isso, tive muita dificuldade em me adaptar e aprender o idioma japonês. Ao chegar à fase adulta, comecei a me questionar muito sobre o que eu era. Brasileira? Japonesa? Os dois ou nenhum dos dois?


Além disso, havia também a questão: o que eu vou fazer da vida? Vou trabalhar com o quê? Foi assim que eu decidi mudar totalmente meu círculo de amizades. Queria viver algo novo. Aluguei um apartamento no centro de Nagoya e fiz novos amigos. Aprendi inglês e fui percebendo que o mundo em que eu vivia antes era fechado. Eu simplesmente pensava que não tinha escolha de futuro. Pelo fato de toda minha família trabalhar em fábricas, eu achava que aquele também era meu destino. Porém, depois de conhecer outro “mundo”, eu percebi que, mesmo sendo estrangeira no Japão, tinha infinitas oportunidades se corresse atrás delas.


Um certo dia, voltei para o interior de Mie para visitar a minha mãe que continuou morando lá. Perguntei a ela sobre as novidades, sobre os meus colegas de escola e, com desânimo, ela respondeu que nada tinha mudado. Isso me chocou um pouco. Foi assim que surgiu a ideia desse livro com depoimentos de jovens [brasileiros] descendentes [de japoneses]. Eles contam sobre todos os desafios que viveram com a adaptação [ao Japão], o idioma, os sacrifícios que tiveram que fazer e, também, as conquistas. Essas pessoas falam sobre a carreira que elas têm hoje, contam como foi o processo para chegar lá e o que fizeram para dar certo. É um livro do qual eu tenho muito orgulho e espero que inspire outros jovens.


Ellie dá destaque aos desafios vividos por jovens nipo-brasileiros no Japão (imagem: divulgação)

A gente vê muita gente que está no Brasil querendo sair do país, querendo ir pro Japão. O que te levou a fazer o caminho inverso?

Esse é um tema complicado porque tudo é muito relativo. Eu tenho amigos brasileiros que estudaram comigo na época do colegial no Japão. Quase todos os que voltaram para o Brasil estão bem. Alguns estudaram e se profissionalizaram, outros abriram seu próprio negócio.


São fatos interessantes e eu queria ver as coisas no Brasil com os meus próprios olhos. Já encontrei com alguns desses amigos de escola por aqui. A minha melhor amiga da época, por exemplo, tem a sua própria empresa de design. Outra se tornou dentista. O meu irmão tem duas faculdades completas, casa própria e um trabalho bom e estável. O Brasil, “apesar dos pesares”, é um país em que você precisa correr atrás do que quer. É diferente do Japão, onde é fácil se acomodar. Se a pessoa não for extremamente focada, ela se perde muito fácil no Japão e não vê o tempo passar. Não quero generalizar, mas essa é a minha opinião. Decidi voltar para o Brasil para ter uma nova experiência de vida, novas descobertas e aprendizados. Minha jornada profissional foi boa no Japão e, se eu precisar voltar, voltarei. Quero ter liberdade de poder escolher entre os dois países e de conseguir viver bem nos dois.

Como está sendo a tua adaptação ao Brasil depois de tantos anos?

Esse é o meu sexto mês aqui. [A entrevista foi feita em agosto.] Os três primeiros meses foram difíceis. O clima e o ambiente me faziam ficar resfriada o tempo todo. A burocracia com a documentação me deixou muito estressada. Eu me pegava perdida com alguns costumes e hábitos diferentes, mas estou me acostumando aos poucos. Gosto da simplicidade daqui, de voltar para os lugares que eu frequentava quando era criança, da cultura de tomar “café da tarde” e outras coisas genuínas do dia a dia brasileiro que me fazem feliz.

O que o público brasileiro pode esperar do livro "16.000 Quilômetros de Carro Pelo Japão"?

São 180 páginas com as melhores fotos desses 7 meses viajando, foquei em mostrar o nosso dia a dia e espero que as pessoas possam se sentir no Japão através dessas fotos.

Como esse livro se conecta à tua história, como fotógrafa, como imigrante e como mulher brasileira de raízes japonesas?

Cresci no interior do Brasil, mas vivi muitos anos em grandes cidades do Japão, como Tóquio e Nagoya. Porém, ao visitar outras províncias e o interior do país, percebi que me sentia mais feliz e em paz no interior, apesar de gostar muito da cidade grande. Sempre fui de poucos amigos, principalmente no Japão, pelo obstáculo do idioma. Houve uma época da minha vida, na adolescência, que eu não tinha amigos. Foi assim que a fotografia surgiu. Eu passava horas na única companhia de uma pequena câmera. Hoje, depois de adulta, sinto orgulho de ter tirado fotos no Japão, e agora no Brasil, esse país que estou descobrindo agora. Ano que vem pretendo voltar ao Japão e expor novamente na Embaixada do Brasil mas, desta vez, para mostrar aos japoneses o quanto o Brasil é maravilhoso.

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